O despertador ausente e a feira

Saturday, December 14, 2013

Ao contrário. Começo pela feira e termino com um recorte da nossa manhã descarrilhada.

Quando Teju Cole pipocou na minha linha do tempo me lembrei de fato. Brasa quente na memória. A feira foi pequena e bem modesta. Havia três mesas vendendo todo tipo de quinquilharia. Muito bibelô, toalha de mesa, enfeites dos mais variados, principalmente natalinos. Eu mesma ia e vinha da minha mesa fuçar junto com as funcionárias do convento que desciam em duplas ou em grupos de cinco, oito, saindo de lá carregadas. No centro havia a mesa do fazendeiro Don vendendo o surplus de alho da nossa temporada de 2013. Do lado uma das freiras vendendo café da região e seus pães caseiros, além dos cachecóis feitos por algum conhecido dela. Atrás a minha mesa e à esquerda, por último, a mesa de uma freira com a sua arte em quadro, cartões, murais e cerâmica e que me causou um certo fascínio. Eu não sabia que o fazendeiro falava alemão e russo e que trabalhava com refugiados do leste europeu e da África. Em algum momento da nossa conversa eu disse que sentia falta de escrever ficção e daí surgiu a conversa que conecta Teju Cole às cicatrizes de todos os homens e aos poemas da Irmã Barbara. Em algum momento ele mencionou que queria muito colocar no papel a história que escutou da boca de um sobrevivente de guerra russo, mas que algo no processo o bloqueava. Fiquei pensando se a bala nas costas daquela vítima de guerra não teria também levado um pedaço da alma do fazendeiro, aquela que instintivamente nos permite o registro da nossa história. Há suicídios e redenção entre as vítimas de tortura e uma resiliência que ele, com os olhos arregalados, disse nunca ter encontrado antes. E assim seguiu contando os horrores que conheceu através do seu trabalho que são para nós o ponto final de uma guerra enquanto que para os sobrevimentes o recomeço. Tentativas de. E me contou sem pedir desculpas, sem abreviar tremendo sofrimento, entre uma venda e outra, uma trivialidade e outra. Quase como se ele estivesse escrevendo um relatório formal, brutal daquilo que nenhum de nós, no acalanto das nossas casas, um dia viveu. 

After learning for the first time how her husband had died, she was asked if she could forgive the man who did it.
Speaking slowly, in one of the native languages, her message came back through the interpreters: “No government can forgive.” Pause. “No commission can forgive.” Pause. “Only I can forgive.” Pause. “And I am not ready to forgive". (De um texto do Cole)

Inner
Branching out
Outter
Seeking
Neither are the whole
but together - There is possibility. 
Reach! (Barbara, freira escritora e pintora)

[O despertador ausente. De como eu quase perdi o meu rebolado e a feira]

Acordamos cinco minutos antes do ônibus do David chegar. De novo, pensei comigo. Desci correndo me troquei e abri a geladeira tirando de dentro dela tudo que eu precisava para o café e lancheira das crianças. De longe escutava a Cecília choramingando, a tampa da privada batendo forte e os passos do David descendo a escada correndo. O ônibus chegou. David o ônibus está aqui, filho. Não vai dar tempo, você vai de carro com a mamãe, okay? David, você vai de carro, o k a y?? Exclamava olhando nos olhos dele ainda sem entender bem que o dia era dia. Abri a porta e fiz sinal com a mão de que ele não ia pegar o ônibus. De volta pensei hoje vai ser um daqueles dias, justo hoje o dia da feira de Natal. A Cecília já tinha encontrado o caminho até a cozinha e logo estava puxando a minha calça. Preparei o que deu com ela no colo e assim que pude a coloquei no chão com um morango em uma mão e na outra um potinho com as suas homeopatias. Ufa, ela não protestou.
Orquestra, a Estela tem ensaio!!! Antonio tem como você levá-la? É daqui a dez minutos, às oito. Vamos! Estela enfim aparece dizendo que não ia dar para esperar a lancheira ficar pronta. Vai de almoço da escola hoje. Coloquei água na sua garrafa e uma maçã no bolso da mochila. De volta pro fogão, comecei a preparar a sopa do almoço, um lanche rápido para eu comer na feira. Bendito preparo de véspera: com os legumes e galinha já cortados e temperados foi mais tranquilo que descascar uma banana. E assim a manhã seguiu até a hora d'eu sair para levar as crianças para a escola e voltar para o front. ;)
Ligeira. Respirava porque tinha de fazer aquela manhã, fatia da vidinha, acontecer.

[Balão e música e funeral simbólico pois que cabe tudo isso numa conclusão]

E aconteceu. Fluiu feito rio com direito a chuva na estrada. A feira rendeu uns trocados. Vendi todos os protetores para os lábios e cinco bastidores. Cheguei até a praticar o meu francês básico em um ato de desespero. O público que frequenta estas feiras sabe e muito pechinchar e eu, seguindo a dica do fazendeiro, me deixei cair na conversa delas. Voltei para casa com vontade de mais feira. Refletindo sobre as guerras e o meu sentimento de impotência diante tamanha brutalidade, não dá para se sentir inteiro quando tantos outros estão pela metade. E então como fica, como se vive? Minha esperança era que a sopa e o sorriso da Cecília quando eu abrisse a porta me resgatasse. E clichê por clichê, me resgatou.

2 comments:

  1. Isa, seu blog é um balsamo! estou com lagrimas nos olhos depois de ler esse texto. leio tudo que voce coloca por aqui, ate estou fazendo o arroz integral com sua dica de deixar de molho por 24 horas––OMG, mudou tudo! estou muito assidua aqui. beijos! da sua fã, Fer

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  2. Fer, querida, quanta honra....aqueceu o meu coração. :))
    A casa é sua, venha sempre que quiser! Beijocas da sua eterna admiradora.

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